




O diário de Cristiano, o silêncio de Fabiana
Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans, é um daqueles filmes que parecem sussurrar enquanto gritam. Com uma elegância brutal, ele se coloca como um gesto raro no cinema brasileiro: um filme que, longe de idealizações, decide ouvir — e não falar sobre — a classe trabalhadora. Mas ouvir por quais ouvidos? E sobre qual classe, a partir de qual corpo?
A narrativa, centrada na trajetória de Cristiano, um operário errante cujos escritos póstumos são descobertos por um jovem rapaz, ergue um monumento à classe trabalhadora brasileira, mas o faz quase exclusivamente pela ótica da masculinidade cisgênera. É nesse ponto que o filme pulsa em complexidade — e também em limite: trata-se de um grande filme, sim, mas sobre um homem. E mais: sobre a classe operária como vivida, sentida e escrita por um homem. Um corpo masculinizado, heteronormativo, solitário.
Cristiano não é um herói, mas um sobrevivente — e sobrevive sendo homem. Sua sensibilidade, seus silêncios, seus cansaços e suas pequenas utopias nos dizem muito sobre como o sistema devora o homem pobre, mas também sobre como esse homem só se reconhece na medida em que age, trabalha, carrega peso, anda e escreve. Arábia constrói com delicadeza uma masculinidade em ruínas, marcada não pelo domínio, mas pela exclusão: é a imagem do homem exausto, quase transparente. Um homem que ama, que se emociona, que sofre — mas que também não vê as mulheres, apenas uma.
Não se trata de omissão, mas de perspectiva. O filme nunca diz que é sobre todos, e talvez aí resida sua honestidade. Mas essa honestidade não nos isenta de perguntar: onde estão as mulheres da classe operária? Onde estão os corpos trans? Onde está o trabalho reprodutivo invisível que sustenta o mundo de Cristiano?
Em termos formais, Arábia é uma aula de contenção. A fotografia opaca, a decupagem rigorosa e a montagem paciente constroem uma sensação de espiral, como se cada plano estivesse prestes a desaparecer. A voz de Cristiano em off é o verdadeiro motor do filme: é através da escrita que esse homem encontra o direito de existir — mesmo que só depois de morto. O gesto de escrever é político, poético e urgente. Mas também é solitário. A palavra, aqui, não é redentora — é tardia.
A classe social, em Arábia, não é uma ideia: é uma vivência. O filme é radical ao não estetizar a pobreza e ao mostrar a alienação do corpo no trabalho com dureza e ternura. Não há caricatura. Há cansaço. E é nesse cansaço que o filme atinge sua força política mais poderosa: mostrar que o trabalhador brasileiro não quer vencer o sistema — ele só quer parar de ser esmagado por ele.
Mas é preciso afirmar: a classe não é neutra, e a classe não é só homem. Arábia sem dúvida contribui imensamente para o cinema e o pensamento político brasileiro. Talvez sua maior vitória, inclusive, esteja nesse gesto de escuta, de ação. Saio do filme com vontade de movimento e, talvez por ocupar um outro lugar subjetivo no mundo, com vontade de falar mais. De falar sobre a classe trabalhadora brasileira composta por mulheres, por dissidências de gênero, por identidades sexuais diversas.
Mas esse já é outro filme. Arábia não se propõe a esse debate. Ainda assim, a reflexão permanece — e se acentua, sobretudo depois de assistir, dias depois, ao documentário FABIANA (2018), lançado um ano após Arábia, dirigido por Brunna Laboissière, que percorre estradas semelhantes, mas sob outra lente: a de uma caminhoneira trans em sua última viagem antes da aposentadoria. Ver os dois filmes em sequência tornou difícil até mesmo separá-los. O que posso dizer é que Arábia não ignora pessoas como Fabiana com crueldade, mas com ausência — e isso também precisa ser dito.
Arábia é necessário. É um filme que honra seus personagens, que escava com sensibilidade a subjetividade do operário brasileiro. Mas talvez sua grandeza também nos convoque a seguir adiante: a encontrar novos corpos para carregar esse diário. Porque, se o filme já disse com tanta beleza o que é ser um homem pobre no Brasil, resta agora perguntar: e quem são os outros que ainda não escreveram suas histórias?

O CINEMAAMALDIÇOADO PELOS NOSSOS ANCESTRAIS
por rosa caldeira
A história começa numa maldição jogada nessa terra há mais de 500 anos e que perdura até hoje. Ela está presente em cada trans, periférico, preto e marginal que resiste e profetiza outras tantas conjurações para que possamos enfrentar mais um fim do mundo.
Essa história vem sendo contada por tecnologias ancestrais de saberes orais, musicais, corporais, religiosos, coletivos e descolonizados. E é honrando essas ancestralidades que hoje ocupamos cada vez mais espaços, inclusive nas artes e no cinema, uma expressão artística que surge no seio da industrialização de países colonizados mas que também é reapropriado pelos nossos saberes. Falo então de um cinema que se transforma em truque, ekê, periferia, negritude, maloka. Mas o lugar de partida dessa conversa é outro: aprendi que para começar qualquer discussão, falar como chegamos até aqui é essencial, ou seja, contar sobre qual é o nosso truque para continuarmos vives em uma sociedade que tenta nos minar a todo tempo.
Todo mundo sempre me chamou de Rosa, inclusive a minha mãe. Eu sou um jovem trans irmão de 7 - se contarmos os agregados, cria da periferia de Francisco Morato. Minha mãe sempre me ensinou muito, mas a contação de histórias veio mesmo direto no sangue. Diz a lenda que meu avó ganhou o primeiro campeonato de mentiras do interior de Minas Gerais e, desde então, a galera ia até nos enterros para ouvir ele falar. Aí que foi esse o chamado que eu segui na vida. Até porque, como qualquer jovem periférico da década de 90, eu sou cria do rap, racionais e tantos outros. Cada malokeiro tem um saber empírico, cêis ta ligado, né? E é por conta dessas poesias cantadas, entre um tropeço e outro, como qualquer causo periférico que eu poderia contar, que descobri o cinema como forma de trabalho e, principalmente, maneiras de contar histórias com ele. O que faltava era entender que eu também podia trabalhar com isso.
Falar sobre cinema para mim sempre foi difícil, mas o motivo foi se transformando ao longo dos anos. Até pouco tempo, a maior questão era a complexidade dos nomes: Tarkovsky, Copolla, Apichatpong; nunca vi, nem comi, só ouço falar. Era muita teoria falando grego, pouco conhecimento, mas muita idealização da minha parte do que seriam esses cânones inalcançáveis. Na época, eu era muito mais próximo dos vídeos do YouTube, das séries pastelão, desse meio termo entre performance, vídeo e documentário do que outras linguagens audiovisuais.
Aí que o lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” era a minha máxima, não me referindo ao Cinema Novo, mas a um audiovisual instintivo meu e dos meus para retratar as nossas realidades periféricas por nós mesmos, em primeira pessoa do plural. A gente ia assim, num cinema que partia de dentro pra fora, retratando nossas vidas. Nessa brincadeira, construímos uma coletividade que desaguou na Maloka Filmes, um polo de resistência malokeira do cinema comunitário criado na Zona Sul da Periferia de São Paulo.
Nessas investigações, ficamos na pegada do documentário por muito tempo. Fizemos trabalhos de pura revolução, como nosso longa metragem Raízes, dirigido pelo Well Amorim e a Simone Nascimento, que resgata a memória e ancestralidade do povo preto da periferia de São Paulo. Foi só anos depois, em 2019, que decidimos fazer nosso primeiro filme de ficção. As referências eram de videoclipes, séries, vídeos do YouTube das travestis pretas e dos filmes que nos fascinavam: Spike Lee, Filmes de plástico, e um monte de curta metragem. Também tinha o incrível Peripatético da Jéssica Queiroz, o N3GRUM3, enfim, um bocado de curta que nos fazia pensar sobre como é foda ter gente perto de você que faz o corre, que é referência de verdade. Taligado? Mas, para além de referências cinematográficas, nossas inspirações tavam mesmo na rua, nas nossas famílias, na poesia, no ritmo da capoeira, tudo baseado em filosofia favelada pura.
Enfim, fizemos o filme da forma mais instintiva de todas, algo que sempre nos rodeou e foi justamente o que nos trouxe até aqui: a coletividade. Resolvemos dividir a direção em quatro pessoas, o roteiro em cinco, direção de foto em três. Para gente não foi nada absurdo: antes mesmo de pensar que história iriamos contar, era óbvio que ia ser assim, coletivo, que era a maneira mais simples que a gente conhecia.
Mas aí, podepa, gravamos. Nosso bairro, famílias, vidas e amigos retratados nas telas e atrás das câmeras. Nossas histórias. Demos o nome pro filme de PERIFERICU e no começo a gente nem tava pensando nesse rolê de festival não, o negócio era exibir na quebrada, rodar pelas favelas, cineclubes, levar a discussão, estender a conversa pros nossos. Eu sempre lembro do PERIFERIATRANS, um festival de 2016 na quebrada da zona sul de São Paulo, que sinto que foi a semente que plantou no meu coração a vontade de trabalhar com arte. O meu desejo era plantar sementes em quantos malokeiros fosse possível.
No final, o filme rodou mais de 200 exibições, foram 30 prêmios pra mais. Feito por pessoas trans, pretas e periféricas. Isso tudo foi dahora caralho. Só que ser um corpo marginal que fura a bolha é carregar a contradição de ocupar um universo muito distante do seu. Então o conflito, o “para que serve esse rolê de festival? Em que tipo de pessoa isso chega?” ainda tava lá. Até porque essa história de festival é contraditória para caramba.
Foi aos poucos que a gente entendeu a lógica perversa desses ambientes. O fato da gente estar lá, representando uma quebrada diversa, trans e preta, excluía que outros como nós também estivéssemos. A gente era a exceção, o selo de representatividade, a validação que eles precisavam para dizer que eram inclusivos, porque a estrutura de fato de quem organizava o rolê, ninguém tinha nem pensado em mudar.
No segundo festival presencial que fomos, levamos a nossa caixa de som e fizemos um baile funk na rua, na frente do evento. Apareceu a galera que trabalhava na limpeza, o povo das quebradas ali perto, geral. Óbvio que veio a polícia porque tinha “muita gente suspeita”. E aí a pergunta: qual sentido de ter um filme feito pelos nossos corpos sendo exibido se o próprio evento não consegue refletir sobre a sua estrutura e o quanto ela é transfóbica, embranquecida e burguesa, desde as músicas que (não) tocam na festa até os coordenadores do evento? Estar nos lugares sendo um corpo marginal é sobre querer existir de verdade, não só enquanto cota lá no palco para validar a exceção que exclui outras pessoas como a gente de estarem ali. Como diria Emicida, eles querem que gente que vem de onde nois vem seja mais humilde, abaixe a cabeça, nunca revide, finja que esqueceu a porra toda. Mas então você descobre que o dinheiro, o prestígio e as oportunidades circulam nesses mesmos lugares contraditórios e, obviamente, pela mais justa alternância de poderes, também queremos ocupar esses ambientes de alguma forma. Na verdade, é sobre acesso a direitos básicos, democracia, equidade, reparação histórica.
Querendo ou não, esse negócio de cinema é potente. Criar imagens, significados, pensar em possibilidades de existência para além da simples sobrevivência, construir mundos possíveis a partir do impossível. Você só pode existir no mundo se você consegue se imaginar nele. E isso tem uma potência enorme para corpos marginais que são sub-representados e desumanizados pelas artes no geral. Falar de artes visuais é debater muito mais do que audiovisual.
Foi então que eu sinto que comecei a entender certas coisas sobre o que era o cinema. Quem decidia se uma pessoa era considerada ou não cineasta era a validação emitida por esses espaços acadêmicos e elitistas. Porque a trava que faz performance no YouTube não é cinematográfica o suficiente? Porque tem 5 filmes de apartamento da FAAP num festival qualquer e não tem um sequer da Leona Vingativa? Porque eu precisei ganhar 30 prêmios nos maiores festivais do Brasil para começar a me sentir cineasta de verdade?
Tudo isso para dizer que, para além de cineasta, o nosso cinema, o meu cinema, é um cinema do ekê, do pajubá, do truque, protagonizado sim pelas pretas, periféricas, transviadas. A gente teve que fazer um filme foda do caralho, sei aceito em sei lá qual festival, citado por
fulano não sei se onde, ter a existência autorizada pela estrutura, para ter as nossas existências periféricas validadas, porque a autoestima da burguesia cisgênera e branca, que estuda cinema desde os 17 anos na USP, é tão forte que quem não se encaixa nesse padrão não consegue se ver enquanto válido de forma nenhuma. E nisso não tô descartando a academia, o cinema de Cannes ou toda a história dessa arte que surgiu justamente como ferramenta da colonização, mas tô questionando o descarte de certas narrativas que essas mesmas instituições promovem desde a origem da sétima arte.
O cinema do ekê nada mais é do que um cinema que entende que falar sobre cinema é muito mais do que debater se gostamos ou não de Bacurau, mas é conversar sobre outros marcos civilizatórios, onde os saberes periféricos, transviados e pretos, do vogue ao candomblé, são resgatados e CIstemas desestruturados. Sistema esse que não é uma nuvem do Dropbox, mas é palpável, corporificado como branquitude, cisgeneridade e colonização que se articulam e se organizam para manter certos grupos no poder. E por isso temos que aprender a construir armaduras para essa guerra, e as artes do ekê fazem parte dessa busca.
Ekê no pajubá, uma língua afrotranscestral, pode ser traduzido como mentira mas, seguindo a tradução da incrível multiartista Vita Pereira, também pode ser entendido enquanto truque. O truque não pode ser nomeado ou ensinado, mas é algo que deve ser experienciado diariamente. Cada um pode construir seu próprio truque.
As ancestralidades pretas, trans e periféricas construíram suas tecnologias para atravessar seus próprios apocalipses, assim como nós estamos construindo nossas armaduras para enfrentar o nosso fim de mundo cotidiano. Até porquê o fim de mundo é o hoje, é o Brasil, é essa ficção, é a realidade que enfrentamos, que foi construída a partir de sangue, apagamentos, genocídios. Falar sobre essa história não dita é também uma forma de realizar essa travessia.
O cinema e a arte do ekê não podem ressuscitar nossos mortos, acabar com todas as violências, fazer brotar as plantações, encher os rios ou atravessar os sete mares a pé, mas ele pode ser um plano de fuga antes que nos destruam. É preciso imaginar para poder escapar e construir outros fins e começos prósperos, até porque o nosso plano é o de continuarmos vivos. Por isso, o cinema, pra nós, só faz sentido se for uma arte do Ekê. Não vamos morrer e nossas vidas, filosofias e tecnologias vão estar pra sempre registradas nas oralidades e filmografias: essa é a maldição que nós continuamos a pregar nessa terra.
E aí eu que pergunto, qual é a sua profetização, a malokeragem, o truque para atravessar esse fim do mundo?